29.7.09

caminhos para pesquisar música-e-arquitetura

Conclusões e continuidades[1]

 

 

Existem relações de criação e análise entre Música e Arquitetura, tanto intencionais e diretas (como no caso da Casa Stretto) como não intencionais (como nos casos do Copan e da Praça Roosevelt).

A sistematização analítica em Música pode vir a contribuir para o desenvolvimento de uma disciplina analítica da Arquitetura e do Urbanismo.

 Espero que o trabalho tenha funcionado para compor um esboço da relação Música-Arquitetura construída com bases sólidas a partir do potencial do elemento stretto.

 

A partir daqui, para encontrar novos caminhos para a pesquisa, é desejável aprofundar os conceitos e, ao mesmo tempo, ampliar as possibilidades de estudo da relação entre Arquitetura e Música – ou seja, continuar desenvolvendo a idéia de sistema considerando novos pivôs na relação das duas artes, a exemplo do stretto.

Um ponto de partida possível – e bastante focado – para uma ampliação e continuidade da pesquisa das relações entre Música e Arquitetura seria a relação de criação e análise entre circulação vertical em arquitetura e contraponto em música, um pouco exploradas neste trabalho.

Um percurso para a investigação poderia ser algo bastante semelhante ao adotado nesta dissertação: começar novamente pela análise de uma obra musical contrapontística contemporânea, acompanhada de exercícios de criação em contraponto. A idéia seria estudar e apresentar o conceito musical de contraponto (que tem relação direta com o stretto, já que o stretto só pode ocorrer em um contexto contrapontístico).

Paralelamente, aconteceria a análise de uma obra arquitetônica cuja circulação vertical fosse bastante expressiva. A escolha desta obra viria após um processo de estudo analítico de um certo volume de obras da arquitetura paulistana, preferencialmente – MASP, Sala São Paulo (a desvantagem aqui é a eventual confusão que pode surgir com o programa arquitetônico voltado à música), Memorial da America Latina. Também em paralelo, seria desenvolvido um projeto que teria como tema a circulação vertical.

 

Uma outra proposta apontaria para um olhar um tanto mais geral e amplo.

Tomando a criação em Música e admitindo a existência de leis naturais (da física do som), a partir das quais a composição musical estrutura um ou mais sistemas (por exemplo, o sistema tonal diatônico e seus desdobramentos), pergunto-me sobre o que poderia ser a Série Harmônica da Arquitetura, as leis naturais que regem a criação no caso do projeto do edifício. Procedendo assim, cheguei à própria lei da gravidade, aquela que se aplica a tudo o que se sustenta sobre a terra.

Continuando o percurso, ao visualizar a imagem dos diagramas de força dos estudos de estrutura[2], me pus a pensar se o sistema tonal diatônico em Arquitetura não seria a estrutura porticada. O que é o pórtico: pilares unidos por engastes a vigas em um único plano. Tomando dois pórticos, já é possível “harmonizá-los” usando uma laje, no plano horizontal – ou ainda, desempenhando uma função estrutural distinta, os vedos, no plano vertical. Assim, temos pórticos harmonizados por panos de lajes e vedos (sendo lajes e vedos, acordes com funções harmônicas distintas entre si).

Os diagramas estruturais seriam, literalmente, diagramas de forças. E os vínculos – ou a união entre uma “tonalidade” e outra (pilares, vigas, laje...), os vínculos, que resolvem a tensão, seriam as próprias cadências tonais. Assim torna-se possível estudar uma harmonia funcional – tonal – em arquitetura, já desde o partido estrutural, bem como o que  Bispo propõe na escala do Urbanismo – tensão e relaxamento no tecido urbano.

O sistema tonal diatônico nada mais é do que um sistema estrutural. Do ponto de vista meramente construtivo, sem entrar portanto no reino da estética e da própria arte, Arquitetura e Música podem ser estudados como sistemas estruturais.

Se for tão certo que a série harmônica está para a música como a lei da gravidade está para a arquitetura, e que, então, a tonalidade está para a música como o pórtico para a arquitetura, (sendo tonalidade e pórtico como processos de interpretação das leis naturais de som e matéria no tempo e no espaço), o passo seguinte é tentar imaginar o que seria a ampliação do sistema tonal em arquitetura. Uma pergunta seria: quais as possibilidades todas e de máxima coerência[3] para vencer a gravidade? Muitas! Por mais que o pórtico ainda impere, por “praticidade” ou “hábito”.

A abóboda, por exemplo, que tanto me atrai; as experiências de Gaudi, os arcos, que outro dia vi serem chamados em uma matéria na internet de “arquitetura medieval”[4], são sistemas estruturais coerentes para vencer a gravidade a partir de esforços de compressão, fazendo uso de pedra, da argila... os materiais que melhor trabalhem a compressão. As tenso-estruturas, com cabos e membranas, seriam outra forma de vencer a gravidade. Enfim, uma proposta de se pensar a arquitetura do edifício como apropriação espacial que se conquista com a vitória da matéria sobre a gravidade.

Considerando esse ponto de partida “nu”, e todo o resto como acessório, quantas não são as possibilidades?

Tenho plena convicção de que precisamos fazer de tudo para romper o pórtico como ponto de partida da concepção estrutural. Não abolir, mas, de fato, expandir esse sistema. Há profissionais e pesquisadores que buscam essa linha também dentro da arquitetura, mesmo sem se relacionar diretamente com música, a exemplo do arquiteto Vitor Lotufo.

 

A partir de Lotufo, é importante ressaltar como o sistema construtivo adotado influi diretamente na organização do canteiro de obras. (Pensando em como ocorre com a Música, esse também seria um aspecto de fácil observação, ao se estabelecer o palco, principalmente no contexto dos ensaios, como o canteiro de obras musicais – e em como o palco das obras tonais pode diferir do palco da Música Contemporânea, por exemplo). Assim, um desdobramento possível para esta pesquisa em um tempo mais adiante seria o de analisar o vínculo existente entre o sistema construtivo adotado em projeto e o canteiro de obras de Arquitetura – a princípio, as implicações mais diretas entre criação e construção, mas sem perder de vista as questões sociais e políticas ligadas à industrialização. Mantendo a busca de relações entre Música e Arquitetura, seria interessante discutir, nos dois casos, o quanto resta de espaço para a criação no canteiro de obras – o quanto e como o operário (em Música, o músico de orquestra ou coro) participa da criação de uma obra, além de ser um mero executor. Essa linha de raciocínio seria útil principalmente no caso da Arquitetura, já que, em Música, é evidente que o executor é um artista – enquanto que, em Arquitetura, a Arte termina geralmente no projeto, no trabalho do próprio arquiteto, que é uma etapa bastante anterior à da obra acabada – Na verdade, como lembrou a professora Anália Amorim, a obra acabada retoma o estado de Arte. Desse modo, o canteiro acaba sendo o espaço e o momento em que a Arquitetura não é considerada Arte.

 

Um outro desdobramento para a investigação, poderia ser o didático pedagógico – abordar diretamente os processos criativos e construtivos que não apenas partem  de  um sistema, mas que podem transformá-lo e adequá-lo  incessantemente como instrumento de cognição de leis que antecedem às da própria criação. Esse tipo de procedimento pode ser muito útil ao ensino introdutório na graduação, de Fundamentos de Projeto. Alessandra Campanna, da Faculdade de Arquitetura da Universidade de Roma, relaciona Música e Arquitetura sob este pretexto. No artigo “Music and Architecture: A Cross between Inspiration and Method”, publicado em julho de 2009 – no qual, inclusive, o exemplo da Casa Stretto é um dos três estudos de casos – o objetivo didático é o de, justamente, “apresentar aos estudantes do primeiro ano do curso alguns métodos para os estágios iniciais de projeto e sua aplicabilidade para qualquer tipo de trabalho criativo”. (Campanna 2009: 257)

Para que tais pensamentos investigativos surjam, torna-se necessário encorajar o entendimento no sentido da imaginação proposta por Schuback, que diz:

“O exercício do entendimento, a fundamentação de toda ciência depende da imaginação em momentos decisivos. O traço mais comum que se pode encontrar entre a ciência matemática e a ciência histórica não é tanto o ideal de exatidão, mas a imaginação de um mundo exato, de um mundo dos fatos, capaz de atravessar incólume todo o oscilar de interpretações e prescindir de todo testemunho. Nesse sentido, a pretensão de que o entendimento nada possui de imaginação talvez seja a única grande fraqueza do entendimento. E como toda fraqueza, quer sempre esconder-se, a ciência, com seu ideal de exatidão, finge não ser imaginação a imaginação que deveras sustenta”.  (Schuback 1999: 8-9)

 

 Para mim, tal esforço imaginativo é uma questão de sobrevivência, diante da tarefa desta pesquisa.



[1]  Ensaio para o capítulo Conclusões e continuidades da dissertação (etapa de qualificação). Em partes baseado na postagem anterior aqui no blog. 

[2] Pelo menos da maneira como ainda estiveram presentes na minha formação como arquiteta, de 1999 a 2004.

[3] Como a coerência proposta por Anton Webern para a música.

[4] “Cambridge apresenta casa com emissão zero de carbono - Universidade se inspirou em sistema construtivo medieval do Mediterrâneo para o desenvolvimento do protótipo em Staplehurst” (grifo meu). in. http://www.piniweb.com.br/construcao/arquitetura/cambridge-apresenta-casa-com-emissao-zero-de-carbono-126755-1.asp (20/Fevereiro/2009).

 

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