29.8.10

estratégias para o ensino de artes na escola

Texto elaborado no final do primeiro semestre de 2010 para a disciplina de psicologia da educação, da faculdade de educação da usp, como parte do curso de licenciatura em música.


O fracasso escolar


Nos seminários apresentados na aula de 19.05.2010, vimos o tema do fracasso diretamente relacionado à questão da avaliação, sendo a avaliação hoje ainda excessivamente vinculada ao conteúdo – e, prosseguindo o encadeamento, o conteúdo como algo ainda bastante encerrado em si mesmo.
Para mim, mesmo conhecendo o tema do fracasso escolar, ainda é um espanto o termo “fracasso” associado à “escola”. Por isso, toda vez que o tema vem à baila, tenho uma certa dificuldade para “ligar” o motor da minha compreensão. Tenho dificuldade mesmo em usar o termo para falar da escola. Para ver se entendo melhor, tendo a buscar em minha própria experiência o que entendi por episódios de fracasso escolar – daí, talvez, o tom mais pessoal neste fragmento do que nos demais, pedindo licença para relatar, a seguir, exemplos de fracasso que eu mesma vivi.
Fracasso escolar eram as aulas de música que tive no único semestre em que estudei no Colégio Rio Branco. Foi na segunda-série, em 1988. A professora entrava na classe marchando, enquanto a classe cantava: “bom dia mestra-tra, bom dia mestra-tra/ vamos cantar felizes a lição/ que lhe deseja um dia alegre/ cheio de paz, amor e emoção” com a melodia da música que abria o show de calouros (acho, porque eu via bem pouca TV) do Silvio Santos. Depois, a professora entoava com a classe “todos” os hinos (nacional, à bandeira, da independência...) e, finalmente, introduzia um momento lúdico-didático pra encerrar a aula. Quem errava as respostas do jogo ouvia um coro sonoro: “Não sabe, não sabe, vai ter que aprender/ orelhas de burro podem aparecer/ Difícil? Parece fácil/ (e, no final, a “parte didática”) mas um dia, mas um dia aprenderá!”. Por este exemplo, procurei mostrar como, quando penso em “fracasso escolar”, não me ocorre, a princípio, a ideia de um “aluno fracassado”.
Faço, então, um esforço para tentar identificar o que teria sido a ideia de fracasso (e de seu complementar, o sucesso, que também me parece um conceito inapropriado para se falar de escola), na minha própria trajetória escolar.
No mesmo semestre das aulas de músicas fracassadas do Colégio Rio Branco (eu ficava tão constrangida nessas aulas que era considerada tímida; logo, do ponto de vista da aula, eu era um fracasso), eu “fazia sucesso” na escola por ser “a menina que desenhava”. Isto, na verdade, não deveria ser chamado de “sucesso escolar”, porque a escola em si pouco pedia que eu desenhasse. Eu produzia, em casa, “revistinhas” de “assunto geral”, que xerocava e vendia no recreio. As revistas chegaram às professoras e, por meio delas, eu era um caso de sucesso escolar por conta de algo que não produzia na escola!
Procurei as revistas nos guardados aqui em casa e vi que, de fato, elas eram boas, para terem sido feitas por uma criança de oito anos. No envelope da página seguinte, incluo a cópia de uma delas. [Aqui no blog, apresento apenas a capa]. Peço que a observem, para que possam entender melhor o que vou narrar na sequência.




























“Revistinha” produzida em 1988. Um episódio de “Sucesso escolar”.



No semestre seguinte, meus pais me mudaram de escola e iniciei a terceira série em uma escola de pedagogia waldorf. Entrei em crise: eu não era mais “a menina que desenhava”, simplesmente porque todos desenhavam.
Havia, de um lado, uma estratégia didático-pedagógica (que ainda não estudei, mas que hoje deduzo) que democratizava a atividade de desenhar e viabilizava aquele quadro. Primeiro, não havia um disciplina específica de desenho. Todos as disciplinas requeriam que o aluno desde antes da alfabetização construísse seu próprio caderno, a princípio com uma sucessão de desenhos, a partir de folhas em branco e sem pauta. Desenhar era, portanto, uma atividade expressiva desenvolvida “naturalmente”.
Segundo, a técnica sugerida para os desenhos (a que era utilizada pelos próprios professores nos desenhos da lousa) estava muito mais de acordo, me parece, com as possibilidades (cognitivas e de coordenação motora) de uma criança de até dez anos. Os desenhos constituíam-se a partir da massa de cores e não por linhas de contorno. O material utilizado tampouco era a caneta a qual eu estava habituada, e sim o giz de cera de abelha (sendo que o dos colegas já estavam um tanto gastos, pois uma caixa durava quase a vida escolar inteira. A paleta era formada de cores tão vivas e "reais" como eu nunca tinha visto - sem contar a possibilidade de se "misturarem as cores", por meio da técnica do desenho e da própria potencialidade das cores primárias).
O resultado já vai se tornando previsível: o meu fracasso escolar! Não que alguém alguma vez tenha feito alguma alusão a isso, pois dentro da produção dos alunos, não havia formas “certas” de se desenhar. Eu me senti fracassada por conta própria porque, em um primeiro momento, além de não contar com a exclusividade do “sucesso” (porque todos desenhavam), precisei passar por um processo de adaptação àquela técnica de desenhar que, para mim, era totalmente nova. E eu sabia, embora não conseguisse formular a questão intelectualmente, que o que eu estava fazendo estava totalmente aquém das possibilidades daquela técnica.
Para que se possa ter uma ideia mais clara do impacto real deste fracasso escolar, selecionei dois desenhos bastante pobres que expressam toda a minha tentativa inicial (fracassada!) de me apoderar da linguagem dos desenhos com giz de cera. Basta compará-los à revistinha e isto deve ficar bem evidente.
Em seguida, coloco desenhos do meu irmão, de quando tinha também seus nove anos. Meu irmão entrou na escola waldorf na mesma época que eu, só que na primeira série e sem nunca ter sido “o menino que desenhava”. Escolhi propositalmente dois desenhos que apresentam elementos semelhantes (casas e cavalos) para que se possa observar o seguinte: a riqueza da expressividade dos desenhos do meu irmão, contraposta à debilidade dos meus desenhos...

Abaixo, meus primeiros desenhos na escola waldorf, retirados dos cadernos de inglês e de história.





Contraponto: abaixo, desenhos do meu irmão com a mesma idade (9 anos), dos cadernos de alemão e de história




Por outro lado, o baque inicial da dificuldade com o desenho foi rapidamente compensado por meu desenvolvimento na flauta doce. A esta altura, eu já estava totalmente livre da lembrança da aula de música do semestre anterior, que só fui retomar agora, revirando o passado escolar durante o estudo na licenciatura.
Com o passar do tempo, fui aprendendo a desenhar com o giz de cera. Aos poucos, também foram introduzidas outras técnicas, sempre de maneira orgânica e “adequada à idade” (notei uma semelhança muito grande neste cuidado com as etapas do desenvolvimento humano, que vivenciei como aluna waldorf, e o proposto por Piaget), de modo que não precisei descartar a habilidade que tinha antes da mudança de escola e ainda pude ingressar e me formar em arquitetura e urbanismo (como primeira graduação).
Porém, com relação ao que é próprio a cada idade e até partindo da comparação que faço hoje entre meus desenhos (mesmo os feitos mais recentemente) e os desenhos do meu irmão feitos naquela época (depois da escola, ele nunca mais desenhou), noto que o desenvolvimento da minha expressividade por meio do desenho pode ter sido prejudicado pelo fato de eu ter tido contato, muito cedo (ainda que nada tenha sido forçado), com materiais e técnicas pouco apropriados para a minha idade. O resultado é o de que, de alguma maneira, algo tivesse sido tolhido na raiz. Por sorte, antes da waldorf, eu nunca havia tido contato com o estudo de música (muito menos com a alfabetização musical), de modo que pude ter um desenvolvimento muito mais livre e expressivo neste campo.
O que apreendo desta vivência pessoal é que, nesta questão do fracasso e do sucesso escolar, que nos remete à avaliação e aos conteúdos, cabe a nós, educadores, eleger aqueles conteúdos que (pensando em “fracasso” e “sucesso”) possibilitem uma maior incidência do “sucesso” e reduzam as chances do “fracasso”, sempre de acordo com cada etapa do desenvolvimento infantil. Considero o percurso praticado pela pedagogia waldorf como um exemplo de estratégia muito bem dimensionada dentro desses parâmetros.

4 comentários:

Paulo disse...

Caramba... que post comprido. Bateu até uma preguiça...

Carolina disse...

Nossa, Paulo! Tenta encostado na parede... Este tem até figurinhas!

Leciane disse...

Ótimo! Adorei o relato.
Estou me aproximando da pedagogia waldorf,devido ao meu tema de pesquisa para a especialização em ética e Direitos Humanos.
Obrigado.

Unknown disse...

Excelente artigo, muito enriquecedor. Estamos começando a estruturar um jardim de infância e ler este artigo alimenta nosso sonho de uma educação que respeite o desenvolvimento da nossa filha mesmo sendo uma pequena cidade do interior do nordeste.
Se tiver algum material que possa nos ajudar na formação pedagógica das educadoras seria ótimo!
Parabens e obrigado!