3.5.08

adendo: para que servem as salas no programa da escola?

O texto a seguir foi escrito durante a elaboração do programa da escola de criação e construção no Pari em 2004. Como o material para a publicação do TFG teve que ser muito recortado (principalmente para viabilizar uma apresentação conjunta do grupo que se reuniu em torno do Pari), disponibilizo aqui a “fonte” com todo o percurso da escola bem mais detalhado. Mesmo não sendo um texto “didático”, porque foi feito livremente para eu mesma me ajudar a organizar as idéias, ele deve clarear uma visão geral do trabalho a partir de reflexões sobre a criação simultânea de um espaço e de um programa de ensino.

Vale chamar atenção para a “confusão” às vezes de “estados” hipotéticos e realistas, típica de quem está muito imerso em um processo de criação que procura transcender os limites do que se encontra estabelecido. Sobre isso, digo que, mesmo hoje, 2008, ao ler e rever o projeto, percebo que, apesar de uma aura “utópica” que permeia as idéias ali colocadas, pode-se constatar (com um mínimo de boa vontade) o quanto os princípios pulsantes em cada aparente “devaneio” são, em essência, totalmente realizáveis! Mesmo dentro da estrutura acadêmica atual, mantendo-se todas as condições formais, materiais e humanas do presente. A maior prova disso é o fato de que, aqui e ali, na própria FAU USP, a escola do Pari segue acontecendo... Afinal, foi da FAU que ela saiu...

(O trecho em itálico serve para facilitar a identificação de coisas ditas mais diretamente sobre música, num mesmo contexto do qual deve aforar novamente mais adiante).

Para que servem as salas no programa da escola?

As salas são espaços de produção, mas estão um pouco para além disso. São espaços de estudo, assim como a biblioteca. Na biblioteca, temos as conversas com os professores vivos, no primeiro andar, e com os que já viveram, no segundo. Ou os que vivem longe. Ou os que vivem perto, mas cansaram de falar sempre a mesma coisa e escreveram livros. O bom de escrever, além de poder multiplicar a própria presença, é poder avançar. Quando se tem um pensamento que se escreve, ele não precisa mais ser toda vez repensado. Vira um ponto de partida novo, sujeito a alterações, claro. Mas já foi pensado. Escrever liberta assim, desse jeito, aumentando a liberdade de movimentos na hora de pensar. Sem jogar fora o que já tiver sido pensado. Mas isso é a biblioteca.

Nas salas, temos outros tipos de estudos. Se a conversa fica boa, oras, “quero ir com você pra algum lugar”. Não é assim? Aí vão aqueles que engrenaram a conversa, para as salinhas ou salonas. Marcam de conversar lá algumas vezes mais, até acabar o assunto e engatar outro, vai saber. As salas têm cadeiras que podem estar lá ou não, têm tamanhos variados, têm espaço para rabiscar grandão, porque falar é um negócio que pode se fazer de vários jeitos. E como existem vários jeitos de estudar, as salas de estudo também devem contar com tudo isso.

Algumas “atividades nomeáveis” têm se delineado mais recentemente nesse trabalho. Por exemplo, tenho falado bastante do canto e da dança, como atividades diretamente realizáveis a partir do instrumento primeiro que é o corpo. Ambas seriam de fundamental importância para qualquer estudioso que almeje uma consciência realmente abrangente de suas próprias possibilidades e limitações, com o objetivo de desenvolver-se a partir dessas variáveis, sempre procurando expandir esses limites. Não quero ser impositiva ao propor essas atividades como “as” atividades que se prestariam a esse fim. Mas acho que elas funcionam muito bem. E estão compreendidas, mesmo atualmente, no campo das artes, ou seja, da criação, da expressão.

Abrindo um breve parêntesis, posso arriscar dizer que aqui entrariam todas as variantes dessas “atividades de desempenho”. Os esportes, algumas práticas esportivas que lidem com isso mais diretamente, com esforço, trabalho e resultado, com trabalho em busca de um desempenho, de uma perfeição, dentro dos limites humanos. Isso deveria ter algum espaço. Ainda que fosse para o esporte como aprimoramento do contato humano. As atividades todas, mesmo as brincadeiras, quando realizadas por pessoas seriamente envolvidas com a sua existência, podem ser sempre produtivas, mesmo que imperceptivelmente. Não tenho muito material meu pra desenvolver isso, estou arriscando, só. Quem se preenche com sua própria existência só precisa de, no máximo, algum espaço para compartilha-la com outros. A vida é boa, não importa o que aconteça. E os outros, plenos também, nos preenchem.

Outras atividades de desempenho: estudos em geral, claro, mas estudos relacionados à performance. Daí (também) entra a música. “Também”, porque a música entra por várias passagens. Um outro exemplo seria pelo estudo de linguagens. Mas aqui estamos vendo a questão da perfeição, do estudo. A música pede precisão, mesmo para ser imprecisa, para “expressar”. O estudo de música desenvolve as habilidades necessárias para o apuro técnico. Para o compromisso com a realidade. Pressupõe afinação e sincronia. Para chegar lá, é preciso ouvir. O exercício de ouvir a realidade mais o que se produz (“a nova realidade”) se alastra para todo o resto. Então vejo muitas salas de piano, como espaços em que as pessoas possam sempre aprimorar-se tecnicamente. São espaços praticamente inexistentes na cidade. Muito importante ter pianos no Pari. Talvez como um “corredor vitrine”, com bom isolamento acústico, mas com vista de todos os pianos sendo usados. Há algum mal em estudar com gente olhando? (não ouvindo) Não sei, a se pensar...

No curso de música atual já acontece um encontro mais direto do aluno e do mestre. O aluno é escolhido pelo mestre desde a prova de aptidão. É como se fosse uma entrevista. E o mestre, se tudo der certo, caminhará com o aluno até a formatura.

Bom, salas de ensaios. Salas de conversas (cada vez acredito menos necessárias essas salas, enfim)...
O grande auditório-arena de palestras. Será que funciona? A palestra não é o mesmo que um livro? Como funcionam todas as formas de comunicação? Dá impressão de que ninguém lê nem escuta ninguém, quanto menos produz alguma coisa que valha ser comunicada. Mas isso é uma opinião extremada, de momento. Tenho visto o quanto os mundos particulares individuais têm riquezas desconhecidas até mesmo dos próprios donos-autores. A maioria dessas riquezas, e vai ver por isso permanecem ocultas, intocadas ou mal tocadas, não passa de um potencial. Isso é louco, o quanto cada um é, sem saber. O que se precisa para saber? Precisa alguém querer saber... mas e se ninguém quiser nunca saber de si? Precisa então existir um despertar pra essa coisa, do grande saber que cada um tem e que pode ser de grande valia para a construção da humanidade. Quantas pessoas não passam batido por aí, delas mesmas? Quantas pessoas não tenho “descoberto” nessas minhas conversar de ultimamente? Quantas estão ainda por se descobrirem e quanto não poderão fazer depois disso? Além de tudo o que poderão fazer por si, o quanto não poderão fazer pelos outros?
São essas as grandes maravilhas da comunicação humana, em escalas reduzidíssimas, mas com potencial, e esta é a palavra-chave, para se alastrar e contagiar tudo. Ninguém é entitulado professor, mas todos podem sê-lo. E aqueles a quem se dá de fato o título devem ter muita consciência do que estão prestes a empreender a cada momento de sua atividade.
Daí não sei se seria por via de salas de ensaios só. Cada vez mais fica clara a importância de esse espaço ser de fato o que contém o nome do trabalho, a tal propriedade de reunião de idéias. Ou, simplesmente, de reunião. Bom, vamos avançar.

Fui questionada por um motivo de extrema importância durante os trabalhos do grupo: haverá aulas? Como será o curso?

Passo um: Não haverá vestibular. O processo seletivo são as vontades envolvidas. Ninguém é obrigado a estudar e, ao mesmo tempo, com o tempo, deve-se criar uma atmosfera de compromisso com o saber. Como seria isso? A idéia de um curso obrigatório, como foi o de história na FAU, por exemplo, me fez querer abolir todo o tipo de obrigatoriedade. Por outro lado, tenho maturidade suficiente para não conseguir me enganar com algumas simplificações. Mas o “obrigatório” deve ser reduzido ao mínimo, para inverter a tendência de reduzir a visão das coisas. Certo? Ficaria assim: um mínimo fio condutor, cuidadosamente elaborado. Para também, alguém lembrou disso, permitir que se formem as turmas. As aulas obrigatórias, antes de tudo, são oportunidades de encontro. Em determinado horário, tantas vezes por semana, sabe-se que tais pessoas estarão em tal lugar. Nem importa tanto o “pra quê”. Pra isso. Pra se encontrarem. Claro que o conteúdo em torno do qual as pessoas se encontram pode se aproveitar ao máximo desse encontro, o que seria lindo. Produção total! As pessoas não devem se encontrar apenas nas aulas, mas também nesse espaço. Por isso as aulas devem ser o máximo “interessantes”, pra darem o que falar. Todas as atividades “acadêmicas” entrarão imperceptivelmente nas conversas. Porque serão parte da vida.
Em resumo: todos os interessados são admitidos pela escola, amparados pela estrutura das salas de aula gigantes. O espaço da arena é amplamente usado em aulas abertas. Como nada é muito linear, ainda que haja um caráter introdutório forte nessa etapa inicial do curso, as aulas “servem” bem a todos os estudantes, por seu conteúdo. Daí o jeitão da coisa de uma “grande palestra”, aberta inclusive para quem passar na rua. Deve haver mecanismos de amplificação do som, tudo o mais simples de ser executado, sem grandes parafernálias. Não sei como seria isso, se com captadores pendurados no prédio. Mas essa é a idéia para a arena. (Lembrando que, é claro, ela pode e deve vir a abrigar outras).
Pensei em um ano como um tempo suficiente para se decidir se se assume ou não um compromisso com a escola. Depois desse um ano de atividades diversas, conversas, vida intensa na escola, o aluno escolhe se quer ser aluno ou não. E caso escolha ficar, assume uma responsabilidade maior, no sentido de sua presença fazer-se mais importante no espaço do que antes. Continuam as aulas obrigatórias, agora mais amarradas, formando um corpo mais lógico, “por blocos” de três cursos simultâneos, poderia ser. (?) Estou arriscando pensar alguma coisa...
O segundo ano seria um novo primeiro ano de alguém que decidiu ficar e crescer naquele espaço. De alguém que optou por confiar sua formação a um mestre. Bom esse segundo ano ser um “novo primeiro ano” por isso. Agora o aluno é realmente introduzido à escola, por meio das aulas e atividades. No segundo ano, independente do “curso”, ficam também mais intensas as atividades de “preparação para o saber”, o canto e a dança. O aluno deve ter contato consciente com seu próprio desenvolvimento, com seus “métodos de saber”. Ao longo desse segundo ano, ele deve ir encontrando seus pares e mestres. Porque, no ano seguinte, ele já comporá a escola, em pé de igualdade com os outros.
Tendo escolhido um mestre e encontrado uma vontade dentro das muitas possibilidades, o terceiro ano deve girar em torno de uma pesquisa. Não importa se individual ou em grupo. O que importa é que as pesquisas sejam vontades próprias muito fortes de quem as desenvolver. Quanto a isso os professores devem estar sempre bastante atentos. Isso vai depender da dedicação dos docentes no espaço da biblioteca, das conversas que vão acontecer ali. Não existe “sonegação de informação”. O professor não precisa trabalhar com o aluno se não sentir vontade, mas pode orienta-lo no encontro dos pares...
Não existe um formato de pesquisa. O importante é que haja um produto a ser definido, produzido e trocado. (comunicado). A pesquisa termina quando o assunto se esgotar. Pode ser reservado para isso até o final do quarto ano. Portanto, são dois anos, talvez um de elaboração e outro de desenvolvimento da pesquisa. Não necessariamente esses tempos, divididos assim. O importante é como acontecem os processos e como são produzidas e comunicadas as idéias. Muita atenção dos professores, para o bom uso da biblioteca e demais recursos disponíveis.
Tudo deve ser feito com muita calma, contanto que esteja sendo feito. Cabe ao professor, muitas vezes, pôr um limite, adequa-lo a dimensão ideal de um trabalho naquele momento de formação. Para não ser algo muito reduzido nem muito extenso. Não existe uma regra, no entanto. De repente, o aluno precisa de uma micro-pesquisa antes de lançar-se a um trabalho maior. O professor deve perceber tudo isso, conversar com os colegas a respeito de seus orientandos. Deve ser um trabalho bastante cuidadoso.
Ao longo desse período, é fundamental que a escola seja tanto um alojamento para visitantes como ponto de partida de viagens. Aí entra a idéia do trem, de pensar períodos de ocorrência dessas viagens, com intuito de estar sempre dinamizando o ambiente das conversas. Fundamental. Como as pesquisas serão parte importante da vida das pessoas, como a atividade é ampla, não se restringindo a coisas mecânicas alheias à vida dos estudantes, esses encontros serão muito produtivos. Não se deve ignorar a juventude típica das escolas, mas os alunos “sérios”, para os quais tudo está relacionado e faz sentido, não se contentarão com atividades esdrúxulas nesses encontros e muito menos no dia-a-dia.
(Importante, dessa forma, prever unidades habitacionais estudantis no entorno da escola, ainda que não sejam exclusivamente habitações estudantis todas aquelas que vierem a ser propostas).
O último ano do curso, talvez o sexto, deve ser um ano “para fora” e “para dentro”. “Para fora” como algo que se volta para o lugar de onde veio o aluno, de fora da escola. Assim, a cidade e todos os seus aparelhos, inclusive o espaço. “Para dentro” como uma avaliação das transformações internas que aconteceram no próprio aluno ao longo do curso. Nada muito drástico, pois o próprio curso, com suas aulas e atividades, tende a desenvolver essa “propriocepção”. O trabalho final, o produto final dessa etapa, portanto, deverá ter essa abrangência. Deve ser justificado pela transformação do aluno ao longo dos anos de escola; o trabalho será feito da relação dessa transformação com uma proposta de transformação da cidade como o conjunto de relações e coisas que a constroem.

Tudo o que escrevi até aqui, sinto muito, parece muito o “resultado” de um curso de arquitetura. Porque peguei uma linha de raciocínio pra chegar até aqui que parte da minha formação no curso de arquitetura. Vamos ver como fica todo o resto.
Voltando ao início, àquele primeiro ano geral. O que é comum a todos os estudantes? Todos pensam, tem pernas, braços e vontade de estar ali. Assim, as aulas expositivas na arena (suponho que sejam lá, já que serão muitésimos estudantes...) serão as mais amplas possíveis. Falarão da vida. Falarão sim, da cidade. Farão brotar do cenário as mais diversas atividades humanas. Mostrarão caminhos. Mostrarão o potencial do espírito, do pensar.
As aulas nas salas, de canto e dança, servirão para mostrar o potencial do corpo. O potencial de realização sem instrumentos que não o próprio corpo, o potencial de comunicação, criação e expressão que eles nos fornecem, ou que somos nós mesmos. Essas aulas num primeiro ano, por mais que se desenrolem em “aplicações práticas”, um coro ou números de dança, serão prioritariamente técnicas. O mesmo nos ateliês. O primeiro ano é o ano de aprendizado básico, do manuseio das ferramentas, sempre com algum produto mínimo, uma amostra do potencial que pode se desenvolver no fazer continuado. Ficam previstas também algumas visitas a fábricas, teatros, sets de filmagens, fazendas (a questão do abastecimento+alimentação estará sempre presente no “campus”)... lugares exemplares de produção. Deve-se procurar, nas visitas, nunca perder o foco da relação daquela produção visitada com o entorno, desde sob o aspecto da cidade até o daquele mesmo ramo produtivo. Durante o primeiro ano, o aluno deverá ter passado por todos os cantos da escola, para que possa ter uma noção mínima de que se deve ficar ou não e, se ficar, para onde mais ou menos deverá caminhar.
Aí sim, no segundo ano, é preciso pensar uma estrutura montada para receber as inúmeras vontades. Isso não deve ser muito difícil, se se partir do princípio de que o curso será, durante um período máximo, o mais generalista possível. Assim, no segundo ano, continua a miscelânia. Lembrando novamente que o segundo ano é, na verdade, o primeiro. E que só no terceiro a coisa deve caminhar para um interesse mais “específico”, por assim dizer, com o início da elaboração da pesquisa. O segundo ano é importantíssimo para consolidar os laços entre “os que ficam”. No segundo ano, já começam as escolhas, por afinidade, dos companheiros de trabalho. Como as coisas vão ser faladas abertamente, com o professor atento descobrindo junto com o aluno quais são as vontades e pensando jeitos de trabalhar com elas, é capaz que haja, sim, muitos trabalhos em grupo, ao menos duplas.
Falo, meio como chute meio como leitura que fiz do Rodrigo Lefèvre, que a dificuldade maior que se tem hoje de trabalhar-se em grupo vem das vontades estarem escondidas, mesmo sem intenção. Não se estimula essa “propriocepção”, nem mesmo a intelectual. Tratam-se os assuntos como se fossem todos externos à individualidade, ou do contrário são inválidos. Defende-se um ideal “da maioria”, que é inventado, ou pior, que fica à mercê de um julgamento de alguém que se permite ter a última palavra. Com tudo posto às claras, será muito mais fácil trabalhar. E não poderá ser de outra maneira.
Para finalizar, por enquanto, mais um pouco sobre o formato dos cursos: deve-se possibilitar que o aluno escolha o que quer fazer “mais decididamente” após um contato com o máximo possível de atividades. Vai acontecer de alguns resolverem continuar algo mais aprofundado na própria dança, ou no canto. Ou projetar no canteiro. O que não pode acontecer é de se descobrir que é possível “praticar teatro”, ou então a cozinha do refeitório, no meio do quarto ano de curso, como uma coisa totalmente alheia ao que vinha se fazendo até aquele momento. Mais pra frente pretendo esmiuçar como essas junções podem acontecer. De como o trabalho com a voz e o corpo pode parar no teatro, passando pelo estudo de dramaturgia, por exemplo; será preciso que haja um amparo profissional para todo o tipo de “atividade relacionada” que se pretenda realizar. E que sejam pessoas que gostem de se relacionar com a “juventude que quer saber”. No fim, uma nova geração de profissionais irá surgir, já sem nomes definidos para as coisas.

2 comentários:

Anônimo disse...

Que texto longo he he
Dá até preguiça de ler...

Carolina disse...

Ih, Paulo... tá assim fraquinho?
Ainda bem que não tive preguiça de escrever...